Em live, elas mandam o recado do 8 de Março: “Profissão de mulher é o que ela quiser”

Três mulheres relatam suas lutas, conquistas, desafios e percepções do mercado de trabalho. Muito se avançou, mas há muito o que avançar, apontam

Do encorajamento alimentado pela família, vem a força de Rosane Marques, uma gestora de 55 anos que cresceu em um lar acolhedor no subúrbio do Rio de Janeiro, fonte de afeto e da bagagem emocional para enfrentar o machismo na faculdade e no mercado de trabalho.

Da esperança de deixar um mundo mais inclusivo para o filho recém-nascido, nutre-se Fernanda Brum Reis, uma advogada gaúcha de 34 anos que na profissão já viu mulheres sendo silenciadas simplesmente por serem mulheres.

Pela liberdade de estampar uma foto com seus cabelos trançados no currículo e de ver seus iguais ocuparem os espaços a que têm direito, luta Withiner Oliveira, uma jornalista negra de 26 anos, moradora de São Gonçalo (RJ), que ouviu alguns “nãos” até receber o “sim” para a vaga de emprego.

E da potência dessas histórias reais, nasceu o encontro que em mais de uma hora e meia abordou carreira, liderança feminina e preconceitos vivenciados. Em live transmitida no Dia Internacional da Mulher, 8 de março, as três profissionais contaram suas trajetórias, percalços, desafios, incentivos e percepções.

Mediado pela jornalista Dani Klein, consultora de comunicação e ESG das empresas e CEO na KICk, o papo teve como tema “Profissão de mulher é o que ela quiser” e foi transmitido no canal Comunicação Energia, no YouTube, como parte do programa “+ Que Respeito”. A atração busca debater, informar e conscientizar sobre todas as formas de respeito entre colegas de trabalho, sociedade e qualquer grupo de pessoas.

Em pauta na resenha virtual, pontos estratégicos, relevantes e nevrálgicos que envolvem a data e a luta feminina no mercado de trabalho e no mundo, tendo por eixo o Objetivo de Desenvolvimento Sustentável (ODS) 5 – “alcançar a igualdade de gênero e empoderar todas as mulheres e meninas”. Esse é um dos 17 ODS lançados em uma agenda mundial adotada durante a Cúpula das Nações Unidas, composta por 169 metas a serem atingidas até 2030.

Dani Klein abriu a conversa contextualizando que a igualdade de gênero é o objetivo prioritário abraçado pelas empresas Tevisa, Linhares Geração, PCH Braço, Tropicália e Povoação, signatárias do Pacto Global. A comunicadora enfatizou que há muito o avançar nessa trincheira, tendo em vista que o segmento, eminentemente masculino sobretudo no quadro operacional, insiste em conservar traços machistas quando se fala em representatividade de gênero.

“Igualdade de gênero não significa que homens e mulheres são iguais. Significa que todos os direitos, responsabilidades e oportunidades não podem depender do fato de a pessoa ser homem ou mulher”, explicou.

Dani também trouxe dados: “Não é muito comum termos mulheres em cargos de liderança. Uma pesquisa recente da CNI (Confederação Nacional da Indústria) mostra que, na indústria, somente 29% dos cargos de decisão são ocupados por mulheres”.

Rosane Marques chegou lá, mas não foi fácil, e espera que o caminho para as mais jovens seja menos tortuoso e mais justo, até com vagas afirmativas para os campos técnicos em que os homens prevalecem em número. Formada em Ciências Contábeis com MBA em Administração Financeira pela Fundação Getulio Vargas (FGV), a diretora de Sustentabilidade ressalta que teve uma base familiar muito importante, alicerçada no respeito, e isso fez toda a diferença.

“Até o ensino médio, não sabia bem o que era esse preconceito, pois vivia com meus pais e meus dois irmãos, homens, em um ambiente de muito amor. Meus pais não estudaram muito, mas sempre priorizaram o estudo dos filhos. Na faculdade, via as dificuldades. Ser auditor era algo muito visado pela turma. Nas entrevistas, era muito difícil as mulheres entrarem. Acho que só tinha uma em minha turma.”

Ainda na graduação, Rosane começou a trabalhar em uma loja de sapatos como auxiliar escriturária. “Agarrei-me fazendo o melhor. Fui desenvolvendo e lidando com os desafios, de pegar o trem muito cedo e voltando muito tarde, porque a faculdade era à noite. Meu pai ou meus irmãos iam me buscar na estação, em Oswaldo Cruz (bairro carioca onde morava)”, recordou-se, emocionada.

Quatro empresas de outros grupos passaram por sua trajetória profissional até chegar no atual cargo. Nestas quatro, não havia programas de crescimento profissional. Foi preciso recalcular a rota, mudar, avançar. “Aqui, lidar com ESG (sigla para Ambiental, Social e Governança, que trata de temas pertinentes a essas pautas) é algo fantástico e me dá um prazer enorme. Temos um veículo que pode proporcionar isso. (…) Nos cargos de liderança, 50% são mulheres. A mulher tem de nascer com o sentimento de ter de formar outras mulheres. Tenho isso em mim.”

Direitos, conquistas e desafios

Das experiências da gerente jurídica Fernanda Brum Reis, advogada que trabalha no escritório do Rio de Janeiro para as empresas, a mais recente é também a mais marcante e desafiadora: ser mãe. “Algumas pessoas perguntam: o que você vai fazer? Como você vai voltar após a licença-maternidade? Minha rede de apoio está 99% no Rio Grande do Sul. A solução é creche. Será uma matemática diária: que horas consigo chegar? Que horas que conseguirei sair. Meu filho está com 48 dias. Estou muito feliz em casa, mas não é fácil e nada romântico”, desabafou.

Fernanda salienta que a advocacia era uma profissão radicalmente masculinizada. Só a partir de 2021, informou, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) passou a ter mais mulheres do que homens em seus quadros. Os estigmas, no entanto, persistem. “Na advocacia, a mulher é vista como frágil para enfrentar um problema complexo. Em outros locais, já sofri preconceito de colegas, não de chefia. Parecia que meu trabalho era menor que os outros. Por que a gente se julga tanto com o trabalho feminino. Por que a gente se critica tanto?”, questiona.

Para a profissional, empoderar mulheres é questão de primeira ordem, sobretudo para lhes dar voz. “Já ouvi queixas de colegas mulheres que já sofreram preconceito. A mulher fala, dá uma ideia, e ninguém escuta. Dois minutos depois, o homem fala e dá a mesma ideia, que é vista como ótima.”

Mulher negra, luta redobrada

Além de enfrentar as barreiras de gênero, mulheres negras encaram a desigualdade racial. A luta, portanto, é ainda mais pesada, testemunha Withiner Oliveira. A jovem jornalista lamenta o fato de muitas pessoas ainda não entenderem o que significam vagas afirmativas.

“Tem muita gente capacitada, mas que não tem oportunidade. Viola Davis (atriz norte-americana) tem uma frase: ‘O que separa uma mulher preta de uma mulher branca é a oportunidade’. Ações afirmativas não significam que você terá um profissional menos qualificado na sua empresa, muito pelo contrário. Você vai dar oportunidade para uma pessoa extremamente qualificada, mas que não tem tanta oportunidade no mercado”.

Foi com uma vaga afirmativa que ela conquistou o espaço que é seu, após receber algumas negativas do mercado. Sem abrir mão de sua ancestralidade e essência, tem orgulho por se manter fiel às raízes. “Vamos colocar mais pretinhos nas empresas. Na foto do meu currículo, estou com o cabelo trançado. Já parei para pensar: será que isso foi um impedimento (que causaram respostas negativas para outras vagas)? Mas não vou me desvencilhar da minha negritude por conta do mercado. O mercado é quem precisa se adaptar”, disse a egressa da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), uma das pioneiras na implantação do sistema de cotas.

“Na faculdade, fiquei muito contente porque vi pessoas iguais a mim. Chegar lá e ver várias pessoas pretas foi algo muito bacana se sentir representada.”

Violência doméstica é ferida aberta

A chaga da violência doméstica é um dificultador para mudança da realidade no mercado de trabalho. As estatísticas flagram essa ferida aberta, afirma Dani Klein. “A pesquisa ‘Visível e Invisível’ (2022), do Datafolha, mostra que 51 mil mulheres foram vítimas de violência no país por dia. Em média, cada vítima é agredida quatro vezes. Foram quase 19 milhões de vítimas em 2022.

“Como a mulher vai apanhar e estudar? Como ela vai levar soco e pontapé e chegar ao trabalho? Tem um pacto de silêncio do brasileiro, de cordialidade, de não interferir, que precisa ser quebrado”, defendeu Dani.

A jornalista acrescenta: “Violência contra a mulher é crime, assédio é crime. A invisibilidade da mulher é considerada uma violência”.

Nas empresas onde atuam as profissionais ouvidas no debate, casos como esse e outros que infringem o Código de Ética e Conduta podem ser denunciados pelo 0800 515 2204.

Dani Klein aponta uma outra realidade inquietante. Mulheres gastam 14% do seu tempo com tarefas domésticas, três vezes mais que os homens (5%). “Você acumular isso é bastante complicado. Isso se reflete também como um desafio para a empresa.”

Ao final, o quarteto deixou uma mensagem. O papel das empresas é  incentivar o trabalho feminino em cada em suas amplitudes, não se moldando a padrões, não desencorajando a mulher a buscar uma vagas de emprego numa área que tradicionalmente impera a presença masculina.

Conquistas femininas são recentes

Durante a live, foram pontuados alguns marcos de conquistas femininas ao longo do tempo. A maioria delas é recente. Confira.

1946 – A mulher conquista o direito ao voto e de ser votada.

1962 – Pela lei, ela passa a poder trabalhar fora sem autorização do marido.

1974 – A mulher ganha o direito de portar o cartão de crédito.

1979 – Conquista do direito à prática de futebol.

1977 – Promulgada a lei do divórcio. O matrimônio não é mais indissolúvel.

1985 – É criada a primeira Delegacia da Mulher.

1988 – A Constituição promulgada proíbe a diferença de salários e critérios de admissão por homens e mulheres.

2003 – A mulher passa a ter o direito de casar sem ser virgem. Antes, em caso contrário, o casamento poderia ser anulado.

2015 – Passa a valer a lei do feminicídio, que torna crime hediondo o assassinato de mulheres, punindo o autor da forma mais severa da lei, 30 anos de reclusão. Também nesse ano, as mães passam a ter o direito de registrar em cartório o seu filho sem a presença do meu pai.

2018 – Aprovada a lei que tornou crime a importunação sexual, tão comum no transporte público.

2020 (eleições) – Passa a valer a lei que obriga partidos políticos a ter ao menos 30% de candidatas mulheres.

2023 – Governo decide pela distribuição gratuita de absorventes para pessoas mais vulneráveis.

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